domingo, outubro 24

O Idiota

Vendeu pouco mas vendeu tudo.
Anos ininterruptos de fantasias projectadas em solidão e oceanos, ilhas generosas e pores-do-sol irreais, faróis abandonados e sinuosos portos de rocha, músculos esculpidos por marés tresloucadas, cabelo aloirado e depois branco e depois o lugar do cabelo, ventos incompreensíveis, tubarões amigos, baleias esfomeadas, galápagos, gaivotas, pelicanos, pirilampos, gambuzinos.

Vendeu tudo, que não era quase nada, conseguiu o barco.
Escreveu ao Ministério das Finanças e ao da Segurança Social, com registo e avisos de recepção.
Embarcou-se e aos enlatados, garrafas do Luso, primeiros e segundos socorros, livros dos desertos mais importantes (sonhava agora em conhecer os desertos mais importantes), noventa e oito rolos de papel higiénico, dez escovas e tubos de dentífrico com extracto de alga, máquina fotográfica e trinta rolos de película a cores. Quinze a preto-e-branco.
Morreu contra uma traineira, duas horas depois de zarpar água fora. O idiota nunca soube travar.

6 daguerreótipos:

Anonymous Anónimo said...

Registo porreiro este!

10:14 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

A felicidade pode ser uma construção sem certificado de habitabilidade! ;)

Obrigado

jm
http://www.mblog.com/rain_song/

1:36 da manhã  
Blogger Paulo said...

X-Act!
(xizato)
[exacto / objecto cortante de precisão]

2:04 da manhã  
Blogger margarete said...

(seria mesmo idiota?)

talvez, a idiotice terá residido nas fantasias projectadas mas, vendeu o quase nada

"A felicidade pode ser uma construção sem certificado de habitabilidade!" - gostei muito desta, esvoaçante!

10:38 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

É o que poderia chamar um final feliz. Morreu quando ainda estava a começar a viver a sua ilusão. Não conheceu o provável desapontamento que se seguiria a tantos e tantos anos de expectatova (quanto maior e mais longa, maior a probabilidade da decepção).

pns

4:52 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

«Idiota, sim!», ladrava-lhe a merda do cão empinando com brio, e pela primeira vez desde que o conhecia, as orelhas mortiças de abano; «só um idiota se lembraria a embarcar para o mar, com tanta tralha de gente de terras e sem o raio de uma cana de pesca», insistia no ladro, o sensato, como se o despropósito de uma inteligência superior o tivesse acometido e estivesse toda a sair-lhe num jorro. Tanta lambidela douta já o fifi da senhora doutora lhe deu naquele rabo apertadinho e sensível que, não só empina de vez as orelhas, como está armado em fina, pensou ele sentindo os salpicos das ondas. «E nem me levaste, idiota?» Ah, demorou, mas foi lá, pensou ele ouvindo um silvo? um apito? Antes de se esborrachar na traineira, o cão soube que ele o ouvira ladrar: Nem me levaste, idiota, o único de nós dois que sabe nadar e travar»
No cais lodoso, baixou as orelhas e o rabo. O rabo, conforme as coisas corressem, levantá-lo-ia ou não em vida, já as orelhas não as voltaria a empinar; em memória do idiota.

N.

5:27 da tarde  

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