terça-feira, junho 28

Giants Shoulders

No fundo queremos ser um piano, dizia ele, não queremos ser gente, queremos ser antes um piano, durante toda a vida queremos ser um piano e não uma pessoa, fugimos ao homem que somos para nos transformarmos completamente em piano, o que não nos é possível apesar de não acreditarmos nisso, assim dizia ele. O intérprete ideal de piano (ele nunca dizia pianista!) é o que quer ser um piano, e eu todos os dias digo para mim mesmo, quando acordo: quero ser o Steinway, não quero ser o homem que toca o Steinway, quero ser o próprio Steinway. Aproximamo-nos muitas vezes deste ideal, dizia ele, ficamos mesmo muito perto quando julgamos ter já enlouquecido, quando estamos mesmo à beira da loucura, a coisa que mais nos aterroriza. O Glenn quisera, durante toda a vida, ser o próprio Steinway, odiava a ideia de se situar entre Bach e o Steinway apenas como mediador da música, e de ficar um dia triturado entre Bach e o Steinway, um dia, assim dizia ele, ainda vou ficar triturado entre Bach de um lado e o Steinway do outro, dizia ele, pensei eu. Durante toda a vida tenho tido medo de ficar triturado entre Bach e o Steinway, e tenho que fazer um esforço enorme para afastar de mim esse pavor, dizia ele. O ideal seria que eu fosse o Steinway e não tivesse necessidade do Glenn Gould, dizia ele, sendo o Steinway poderia tornar o Glenn Gould inteiramente desnecessário.


(...)


Não há nada mais pavoroso do que ver uma pessoa tão grandiosa que a sua grandiosidade nos destrói, e nós somos os espectadores e as vítimas desse processo, e acabamos afinal por ter de o aceitar, conquanto não acreditemos efectivamente num processo assim, não acreditemos durante muito tempo ainda até que, por fim, ele se torna para nós um facto irremediável, pensei eu, quando já é para nós demasiado tarde.


(...)


Ou nós nos entregamos à música totalmente, ou então mais vale renunciar a ela, dissera o Glenn muitas vezes, mesmo ao Horowitz. Mas só ele sabia o que isso queria dizer, pensei eu.


(...)


Mal o Glenn havia tocado meia dúzia de compassos já o Wertheimer pensara em desistir, lembro-me perfeitamente, o Wertheimer tinha entrado na sala do primeiro andar do Mozarteum que havia sido reservada para o Horowitz e escutou e viu Glenn, ficou imóvel à porta, sem ser capaz de se sentar durante todo o tempo em que o Glenn esteve a tocar, só depois do Glenn ter parado de tocar é que o Wertheimer se sentou, tinha os olhos fechados, estou a ver isso ainda perfeitamente, pensei, ele não disse nem mais uma palavra. Usando uma expressão patética posso dizer que aquilo foi o fim, o fim da carreira de virtuoso do Wertheimer. Estudamos durante dez anos um instrumento que nós próprios escolhemos e, ao cabo dessa década de intenso trabalho, dessa década mais ou menos deprimente, ouvimos meia dúzia de compassos tocados por um génio e ficamos liquidados, pensei eu.



Thomas Bernhard
O Náufrago

4 daguerreótipos:

Blogger Carla de Elsinore said...

ando a ler o náufrago, e a ouvir o glenn. :)

8:54 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

no fundo, quer-se ser alguma coisa, além de, idealiza-se, projecta-se...

a grandiosidade é-o aos olhos/alma de quem a vê/sente;
e pode tornar-se um peso, sim, seja pela carga de todo um esforço investido num trabalho de paixão, seja pela forma como genialidade que se reconhece em si, ou no outro e não em si, é vivenciada... e pesos tais são susceptíveis de arranharem a loucura (como sugere o texto), de paralisar um Wertheimer perante o desempenho de Gould ou de inquietar um Gould com desejos aquém da sua dimensão humana;
pensar a grandiosidade aproxima-se muito da idealização e esta é sempre aquém?

(breve apenas suposição: pudesse Wertheimer chegar a tocar como Gould, talvez viesse a desejar ser piano; pudesse Gould chegar a ser piano, talvez viesse a desejar ser os sons do piano, a música-ela-mesma?)

curiosidade: o livro de Bernhard baseia-se em documentos ou factos verídicos da vida de Gould e outros pianistas ou é essencialmente ficção?

margem

3:48 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Glenn e Bach... lembrei-me que Joege de Sena escreveu um poema de nome BACH: VARIAÇÕES GOLDBERG, por lá passam coisas da música, e também da grandeza, um excerto (que é quase o todo):

"Se os sons, porém, não são de devaneio,
e sim a inteligência que no abstracto busca
ad infinitum combinações possíveis bem que ilimitadas;
se tudo se organiza como a variada imagem
de uma ideia despojada de sentido;
se tudo soa como a própria liberdade dos acasos lógicos
que os grupos, e os grandes números, e as proporções
conhecem necessários; se tudo repercute como
em cânones cada vez mais complexos que não desenvolvem
um raciocínio mas o transformam de um mesmo em si;
se tudo se acumula menos como som que como pedras
esculpidas em volutas brancas e douradas cujos
recantos de sombra são um trompe-l?oeil
para que elas mais sejam em paredes curvas;
se uma alegria é força de viver e de inventar e de
bater nas teclas em cascatas de ordem;
e se tudo existiu na música para tal triunfo
e dele descende tudo o que de arquitectura
possa existir em notas sem sentido ? COMO
não proclamar que essa grandeza imensa
não se comove com íntimos segredos (mesmo implica
que não haja segredo em nada que se faça
a não ser o espanto de fazer-se aquilo),
é como que uma cúpula de som dentro da qual
possamos ter consciência de que o homem é, por vezes,
maior do que si mesmo. E que nada no mundo,
ainda que volte ao tema inicial, repete
o que foi proposto como tema para
se transformar no tempo que contém. Quando, no fim,
aquele tema torna não é para encerrar
num círculo fechado uma odisseia em teclas,
mas para colocar-nos ante a lucidez
de que não há regresso após tanta invenção.
Nem a música, nem nós, somos os mesmos já.
Não porque o tempo passe, ou porque a cúpula se erga,
para sempre, entre nós e nós próprios. Não. Mas sim porque
o virtual de um pensamento, se tornou ali
uma evidência: se tornou concreto.
Um concreto de coisas exteriores ? e o espanto é esse ?
igual ao que de abstracto têm as interiores que o sejam.
Será que alguma vez, senão aqui,
aconteceu tamanha suspensão da realidade a ponto
de real e virtual serem idênticos, e de nós
não sermos mais o quem que ouve, mas quem é? A ponto
de nós termos sido música somente?"

margem

3:54 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Só peço uma coisa, se tiverem tempo:Leiam O Lado activo do universo, do antropólogo ibero-americano Carlos Castanheda. Uma vez lido, asseguro que a fotografia exprime perfeitamente o conteúdo do livrinho.
Cumprimentos desde Sevilha,
Rafa.

8:19 da tarde  

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