No rest for the wicked
Este blog termina aqui termina aqui.
Obrigado a todos e a mim.
[vaziobonito@sapo.pt]
Reagi logo à sirene; galguei a alameda e contornei os olmos incandescentes. A noite estava um forno e em frente à padaria transpirava-lhe o corpo todo. Parei para lhe acender o cigarro. O vestido parecia explodir-lhe à medida que o peito desabafava, velado e revelado a farinha de tons vermelhos com vida própria. Percebi nesse reflexo o inferno que ia pelos montes em volta da cidade. Quando uma gota de suor lhe escorregou da têmpora pelo pescoço e rasgou um canal vale abaixo não consegui pensar mais nada senão que ela era quem ardia e era eu quem precisava de ser salvo.
Está um dia lindo. Chove frio e nevoeiro. Vou andar de boca aberta: de espanto, para me limpar por dentro e para me fazer de tolo. Assim ninguém me chateia.
Decidi ir escrevendo num guardanapo o que vi enquanto te via.
Quando pediste o café curto e esvaziaste o pacote de açúcar no cinzeiro percebi que alguma coisa séria te preocupava, apesar da gargalhada. Alguma coisa importante; não me parece que consigas permitir esse momento de delícia a quem te observa - mesmo que à distância de umas boas três filas de mesas e cadeiras - consciente de que o fazes.
Nesse fim de tarde estavas húmida, mas o teu impermeável, no bengaleiro, encharcado. Uma boa compra. Sorrias se davas uma passa realmente saborosa. Nunca tinha visto ninguém, com mais de 15 anos de cigarros, pelo menos, relacionar-se assim com eles. A maior parte dos fumadores já não sente o que fuma. Aliás... A maior parte dos fumadores já não sabe bem se tem um cigarro aceso ou se precisa de acender outro.
Durante vinte minutos não paraste de escrever, que eu vi. Quando te certificaste que as mãos estavam tão secas quanto iriam ficar e quanto a chávena poderia contribuir, desdobraste um guardanapo de papel, fizeste dele uma folha quadrada e começaste a rabiscar. Quando finalmente terminaste chegou outro café, que ficou gelado e que tinhas pedido porque te apeteceu o pequeno chocolate que trazia.
Deixaste duas moedas perto da chávena mas não no pires. Em cima da mesa. Levantaste-te e sorriste para o dono, atrás do balcão. Passaste por mim e entregaste-me o guardanapo enrugado numa bola. Vestiste o impermeável e entraste na rua, onde continuava a chover.
Pedi a conta e guardei o livro que não tinha chegado a abrir. Desdobrei o guardanapo e li o que tinhas estado a escrever. Se bem percebi a tua letra, dizia:
Decidiste ir escrevendo num guardanapo o que viste enquanto me vias. Quando pedi o café curto e esvaziei o pacote de açúcar no cinzeiro percebeste que alguma coisa séria me preocupava, apesar da gargalhada. Alguma coisa importante; não te parece que eu consiga permitir esse momento de delícia a quem me observa - mesmo que à distância de umas boas três filas de mesas e cadeiras - consciente de que o faço.
Nesse fim de tarde estava húmida, mas o meu impermeável, no bengaleiro, encharcado. Uma boa compra. Sorria se dava uma passa realmente saborosa. Nunca tinhas visto ninguém, com mais de 15 anos de cigarros, pelo menos, relacionar-se assim com eles. A maior parte dos fumadores já não sente o que fuma. Aliás... A maior parte dos fumadores já não sabe bem se tem um cigarro aceso ou se precisa de acender outro.
Durante vinte minutos não parei de escrever, que tu viste. Quando me certifiquei que tinha as mãos tão secas quanto iriam ficar e quanto a chávena poderia contribuír, desdobrei um guardanapo de papel, fiz dele uma folha quadrada e comecei a rabiscar. Quando terminei chegou outro café, que ficou gelado e que tinha pedido porque me apeteceu o pequeno chocolate que trazia.
Deixei duas moedas perto da chávena mas não no pires. Em cima da mesa. Levantei-me e sorri para o dono, atrás do balcão. Passei por ti e entreguei-te o guardanapo enrugado numa bola. Vesti o impermeável e entrei na rua, onde continuava a chover.
Pediste a conta e guardaste o livro que não tinhas chegado a abrir. Desdobraste o guardanapo e leste o que eu tinha estado a escrever. Ficaste tão perturbado que achas que não tens a certeza de ter percebido a minha letra.
Vendeu pouco mas vendeu tudo.
Anos ininterruptos de fantasias projectadas em solidão e oceanos, ilhas generosas e pores-do-sol irreais, faróis abandonados e sinuosos portos de rocha, músculos esculpidos por marés tresloucadas, cabelo aloirado e depois branco e depois o lugar do cabelo, ventos incompreensíveis, tubarões amigos, baleias esfomeadas, galápagos, gaivotas, pelicanos, pirilampos, gambuzinos.
Vendeu tudo, que não era quase nada, conseguiu o barco.
Escreveu ao Ministério das Finanças e ao da Segurança Social, com registo e avisos de recepção.
Embarcou-se e aos enlatados, garrafas do Luso, primeiros e segundos socorros, livros dos desertos mais importantes (sonhava agora em conhecer os desertos mais importantes), noventa e oito rolos de papel higiénico, dez escovas e tubos de dentífrico com extracto de alga, máquina fotográfica e trinta rolos de película a cores. Quinze a preto-e-branco.
Morreu contra uma traineira, duas horas depois de zarpar água fora. O idiota nunca soube travar.
Leite quente com meia colher de chocolate e um cigarro à janela para o monte-de-frente e para marte-de-cima, com a roupa de andar por casa mais ridícula do mundo e umas meias velhas de cento e cinquenta anos-luz.
Morreu Maria, na noite do dia em que a manhã choveu desde madrugada, ao recusar-se continuar para um bando de bêbados inúteis com histórias de abandonos, arritmias e filhos retalhados por dentro. Quanto mais sabotava a música melhor lhe saíam as dores; a banda calou-se, pareceu ficar um sax, tímido, como eco dos seus murmúrios, mas não havia sax nenhum, era ela que abafava o lamento arrancando cabelo atrás de cabelo. Stormy Weather, Maria.
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